quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Ainda não

Uma caixinha de música tocava baixinho uma melodia que relembrava a época de criança, a antiga casa na Rua do Sol, as brincadeiras de pescaria, as brigas com os irmãos. Dentro dela havia lembranças, que vinham na forma de antigas figurinhas, bolinhas de gude, um pingente dado pelo primeiro namorado. Tantos anos passados, tanta coisa vivida.Na velha penteadeira se escondiam enfeites, escovas, maquiagem, jóias. Tudo em gavetas ou espalhado sobre a madeira antiga. Um espelho manchado refletia um rosto enrugado. Um rosto mais gasto que o quarto ao seu redor. Setenta e nove anos, ela contabilizava. Outrora uma atriz, uma dançarina, uma beleza encantadora, agora apenas um olhar cansado do mundo que o cerca. Apenas mais uma a tentar sobreviver sem se afogar nas mágoas que a vida trás, que a vida deixa, que nos impõe.
Na sala, seus filhos, seus netos, e agora, quem diria, sua bisneta, brincavam, conversavam, bebiam, cantavam. Todos muito empolgados, muito absortos em seus problemas, em seu próprio mundo pra perceber que alguém ali não estava bem nesse Natal. Para notar que nesse dia ela não se sentia ela, mas uma outra, uma impostora. Aquele rosto acabado não era seu. Ela era jovem, ávida, espirituosa, não decadente como agora se encontrava. Era triste perceber que o tempo havia passado e seu resultado estava marcado no rosto, no corpo, no coração.Olhando fixamente para o seu chá a esfriar sobre a mesa de cabeceira contendo agora adose de uma substância que aliviaria o peso em seus ombros.
Se levantou e caminhou até sua xícara, o seu destino.Foi interrompida por Fernanda, a sua bisneta, que com quatro anos segurava sua mão e a chamava pra brincar.-Vamos vovó, vamos ninguém mais quer brincar comigo, por favor, vovó.Fernanda falava tão direitinho, olhava e fazia beicinho de quem iria chorar se ouvisse um não. Ela não pôde negar. Então se levantou e acompanhou a criança até a casinha de boneca, decidindo que talvez, valesse a pena aguentar mais um pouquinho, esquecer toda tristeza, e dar tempo ao tempo para decidir quando sua hora havia mesmo de chegar.